terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Releitura

(n. literal)

UM PAR DE DENTES
JAMAIS ABOLIRÁ
A LIBERDADE

(ou da poesia do que surge do desconhecimento de uma língua)


sábado, 24 de janeiro de 2009

Retrato XXI

11/01.21:56

Limpava os vidros da empresa todas as sextas-feiras às 19h, quando quase todos já estavam nos bares bebendo a happy hora. Esperava algum reconhecimento, mas pelo horário não recebia muitos sorrisos: era apenas ele, a bucha e o vidro. No começo temia a altura e que o cabo se rompesse. Mas ao fim ele já não se lembrava. E nada, era isso: trabalhar só pelos ares.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Retrato XVIII

28/11.19:33

Quando ele prestou atenção, viu na parede uma gota de poeira ruindo a ordem do ambiente. No um minuto que separou seu pensamento do ato de buscar um pano, constelações de fadas invadiram a sala trazendo pó mágico de pirlimpimpim. Quando voltou com o pano, viu a multiplicação de poeiras e limpou uma, duas, sete vezes, até que o pano ficou sujo de pó, a parede limpa e ele em completa harmonia com o seu lar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Retrato XVII

19/11.20:42

Nessas noites quentes, o menino olha o céu e procura as estrelas que nunca encontra.

No quintal tem um pé de caqui. Na janela, um cactus sem flores.

Mas para o menino só lhe toca o escuro.
Nem mesmo o silêncio mais forte pode matar essa dor.



(enxaqueca, me falou depois)

Refeito

sábado, 17 de janeiro de 2009

Retrato XVI

12/11.09:19

Do lado de cá ela pega a escova de cabelo, a escova de dente, a escova de lavar roupa e escova.

Do lado de lá ela abre o livro em chinês e tenta traduzir palavras sem conseguir construir frases.

Um dia ela vai ver: se misturasse laca criaria algo novo e lhe daria algum sentido. Surgiria uma unidade no fato concreto que só com construção poderia ser lido. Mas seria lindo.

Nesse momento do lado de lá ela deixou o texto e escova os cachos. Lava o texto. E constrói uns dentes fortes. Para quê? Não sei.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Retrato XV

07/10.17:01

Caminhou, quase correu, bateu na parede, gritou de dor e caiu, sentado no chão. Riu. Riu até que a garganta doeu. Começou a acariciar a parede len ta mente. Logo usou as unhas para fazer ruído. Mas estava a salvo. Ninguém o ouviria. Ali, mesmo o ruído mais áspero nada mais era que silêncio e secura.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Retrato XIV

18/09.16:08

Em uma cidade em que não há ruas nas árvores
o passar do tempo não diz do cair das folhas.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Retrato XIII

10/09.21:04
Debaixo da amoreira Maria colhia miozótis. Tinha formiga passeando por entre as folhas. Tinha gotinhas de chuva de ontem. Ela brincava com flores enquanto no fundo da casa eles gritavam. Assim aprendeu a falar cada dia mais baixo. Até que chegou um dia em que só as flores conseguiam ouvi-la.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Retrato XII

19/06.14:39

Por trás das grades vejo a menina que acabou de cair, empurrada por outra mais velha que continua batendo nela. As outras olham e se calam enquanto ela chora. Eu também vi e quis dizer qualquer coisa. Me aproximei da grade. A mais velha queria bater em mim também, eu senti, mas as grades que a protegiam do externo me protegeram dela. Disse então que eu não me intrometesse, que era a irmã dela. Naquele dia ela não bateu mais na irmã.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Retrato XI

10/06.21:05

O menino tem 12 anos. Gosta de carne moída com mandioca e de olhar para o céu quando há estrelas. Tem dias em que não há estrelas. Em outros, não há céu, só chão, duro. O corpo fica pesado nos dias assim. O menino tem medo do escuro.

Retrato X

07/06.10:53

Rosaura é florista. Ela gosta de rosas pelo motivo inútil de que essas flores combinam com o seu nome. Cada vez que alguém encomenda um buquê pela internet fica se perguntando porque será que as pessoas enviam flores, ou então por que escolheram os cravos e begônias ao invés de rosas. Geralmente ela se perde nesses pensamentos enquanto monta os arranjos, nenhum deles para ela.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Retrato IX

Ele estava sentado no ônibus sem ninguém perto. Se algum desavisado mirasse seus olhos, veria uma grande sorte de fugas, dores e desatinos. Mulheres que nadaram em seus braços e logo foram abandonadas. Famílias sem seus bens, desaparecidos por entre janelas. Do outro lado da pista está engarrafado. Mas tudo parece livre e possível para ele, que acaba de descer do ônibus. Na mão direita um pequeno papel com uma sequência de números, onde está - ele sorri - uma saída para a felicidade.

Retrato VIII

02/05.21:07

Sentado no bar, tomava um suco de uva sempre olhando para frente. As mãos seguravam o queixo, o olhar compenetrado em direção à parede, você poderia se perguntar, o que há do lado direito? Pois eu vejo que não há nada; nenhuma pessoa em especial que porventura ele pudesse estar esperando já sem ansiedade, impassível. Ele esperava ela, a torta de maçã, encontrá-la seria encontrar consigo mesmo, reviver momentos doces furando a torta enquanto esfriava na janela. Mas antes ele não pagava para ela nem por ela. A torta da avó.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Retrato VII

Um domingo à tarde. Ele pediu uma cerveja e um macarrão na chapa. Ela, uma salada e água. Mineral. Lugar comum não fosse o entardecer que, contudo, não amenizava o franzir da testa dele e o não franzir dela. Estava boa a comida. Razoavelmente fria a tarde. Ele não disse o motivo das rugas, e ela não perguntou o porque da alteração na testa. Sim, a comida estava boa.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Retrato VI

29/04.00:08
Mairo não estava cansada de andar quando foi trazida para casa. Seus sapatos brancos, lustrados, pareciam um misto de terra e cera em contraste com o vestido que usava - cor de rosa e impecável - ao sair de casa. Quando chegou em casa, não pensava na bronca que levaria pela terra nos sapatos novos, mas sorria . Pensava na sua nova descoberta: o pássaro gosta de comer grãos de bolo.

Sorria. O olhar daquela mulher grande parececia uma pintura no meio da paisagem decorada à luz de um dedo detalhista. [Puxa, que lindo!] pensava a menina, [que lindo!].

No dia seguinte, de tanto correr, rasgou o vestido. Chegando em casa, silêncio. Dois olhos enormes. Dessa vez Mairo não tinha descoberto nada. Era dia de chuva e os pássaros não apareceram. Sem descobertas, descobriu aquele olhar. Sentiu uma dor imensa e nunca mais amarrotou o vestido ou sujou os sapatos de sair.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Retratos V

24/04.23:30

Romeo saiu de casa sem se despedir da mãe ou dos irmãos. Sentia-se quase tremer. Ansiedade. Demoraria ainda para chegar, sabia que teria muito a esperar: o trem, o ônibus e a caminhada.

Olhava para as pessoas que cruzavam seu caminho com descaso e ódio. Ninguém curaria sua dor, nenhuma palavra, nem mesmo da moça bonita da padaria onde ele sempre comprava o pão. Naquele dia ninguém sorriu para ele. Tivessem sorrido, menor seria sua dor? Ou ódio.

Demorou ao todo uma hora e quarenta minutos para chegar até a faculdade. Foi a uma hora e os quarenta minutos mais demorados de toda sua vida, curta. O tempo parecia parado.

Chegou um pouco cansado. Inquieto, não tentou disfarçar o peso de sua mochila, vazia de literatura e cheia de violência. Na impossibilidade de curar-se, matou-se, levando consigo outros trinta e dois. Dentre eles, Anne, das aulas de filologia. Apaixonada por Romeo, nunca ousou mirá-lo ou sorrir. Nunca o fará.

e foi assim .
assim

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Retrato IV

20/04.17:53

A menina sorri. O sol batia em seus cabelos presos em maria chiquinha. Ela via o seu pai chegando. Não era ele na verdade mas o caseiro. Ela confundiu pois estava longe; ela tem um princípio de miopia que ninguém ainda percebeu. Queria que fosse o pai, há dias que o espera voltar para casa. Mas não volta. Partira um dia após seu aniversario de seis anos. Nesse momento ela sorri para o caseiro, que ainda está muito longe. Ele vê a menina e pensa que ela é sozinha e triste. Ela sorri para o pai, mas não para o caseiro. Ela não gosta dele. O caseiro machuca as galinhas, corta o pescoço delas sem dó. O pai jamais faria isso. O pai não machuca galinhas e jamais machucaria alguém. Ela sente dor ao enxergar que não é o pai, mas o caseiro trazendo em mãos uma caixa de ovos. Ela chora.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Retrato III

A mulher entra no ônibus com uma mala vermelha e desgastada, junto ao marido. Tem cabelos longos e sua saia é branca de algodão. O homem usa barba e fala sem parar. Ela tira da mala uma manga e começa a descascá-la com os dentes, e logo a chupá-la. A manga é daquelas com muitos fiapos. Começam a cair gotas amarelas na saia branca. A manga está doce, é só isso que ela pensa. Dentro do ônibus o homem parece falar com as janelas. Ele sabe que aquela manga estaria doce. Depois ela vai lavar a saia e ele vai fingir que ela sabe do que ele falava.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Retrato II

Levava uma vida sem grandes variações ou vaidades. Acordava todos os dias às 5:50 da manhã, tomava um copo d'água, trocava-se e ia correr na orla da praia por vinte e três minutos. Voltava, bebia um copo d'água, molhava as plantas e tomava seu café, ou seja, leite com pão de sal e manteiga. Nunca gostou de café, lhe dava dor de estômago. Depois caminhava trinta e três minutos até a estação de metrô, esperava dois minutos e meio e tomava o metrô até a quinta parada, a partir da qual caminhava três quadras até o ponto de ônibus, esperava geralmente vinte e nove minutos e sempre se sentava no lado direito quando havia lugar, ou seja, raramente. O senhor de barba ruiva carregava sua pesada bolsa de trabalho e sempre descia dois pontos antes, então ela sentava-se no lugar dele até a rua das flores, onde ela descia. A rua das flores não tem jardins nem árvores, ali há diversos galpões de fábricas. Ela trabalha como telefonista em uma fábrica de colchões.